sexta-feira, 8 de outubro de 2010

ATENA NA IDADE MÉDIA

Atena na pós-antiguidade

Idade Média

Embora tidos como verdadeiros seres vivos, cuja existência era real, desde o século VI a.C. se faziam críticas às descrições literárias dos deuses engajados em comportamentos violentos ou de moralidade duvidosa, como muitas vezes apareceram em Homero e Hesíodo, e iniciou-se uma tradição de se interpretar suas ações numa leitura alegórica, como uma alternativa à interpretação puramente histórica, fundando-se a mitografia. Os mitos foram racionalizados e entendidos como alegorias de forças da natureza e do cosmos, ou como movimentos da alma humana, ou se os relacionavam a determinadas partes e funções do corpo. Atena materializava-se na sabedoria opondo-se a Ares, expressão da insensatez; Zeus se tornava a mente, enquanto que Atena era a habilidade artística.[119] Ela também estava relacionada ao crânio, de onde nascera, e à respiração, que se acreditava estar ligada à função do pensamento, e relatos antigos referem sua associação, em localidades isoladas, ao céu claro, à aurora, ao éter, ao trovão, ao relâmpago, aos olhos, ao sol ou à lua.
Na era romana se popularizou uma outra interpretação, chamada evemerismo, que fazia dos deuses homens e mulheres históricos, cujos feitos haviam sido magnificados pela tradição, acabando por serem divinizados. A abordagem alegórica dos textos dos poetas canônicos e dos mitos que eles relatavam frutificou ao longo de vários séculos, até que o Cristianismo entrasse em cena, causando uma dissociação entre os métodos mitográficos e sua substância e objeto, com duas consequências de largo alcance. A primeira, dizendo respeito aos métodos, nasceu das acirradas controvérsias teológicas entre judeus e cristãos e entre cristãos e pagãos, permitindo aos apologistas adaptarem para o Judaísmo ou o Cristianismo o método de racionalização dos mitos clássicos, preservando-os para a mitografia medieval, quando as aparentes imoralidades do próprio Velho Testamento foram postas em evidência e alegorizadas. O segundo resultado, relativo ao conteúdo dos mitos, foi imprevisto pelos escritores cristãos, pois ao atacarem o Paganismo na tentativa de erradicá-lo - no que foram por fim bem sucedidos -, comparando-o à religião pagã, preservaram para a posteridade muitas passagens dos mitos clássicos e suas interpretações pelo simples fato de as descreverem. Por outro lado, a corrente evemerista foi aproveitada pelos escritores cristãos para atacarem o politeísmo como um erro doutrinal básico.

Atena não foi exceção na campanha difamatória cristã. Como exemplo, Clemente de Alexandria criticou a multiplicidade de versões de seu mito como uma evidência da alegada falsidade do Paganismo, e condenou a imoralidade de uma das versões onde ela aparecia como filha do gigante Palas, tendo depois assassinado seu pai e o esfolado para fazer com a pele sua couraça. Outros escritores distorceram ainda mais esse episódio transformando-o em uma história de incesto e mutilação.
Em 391 o imperador Teodósio I baniu oficialmente o Paganismo, mas por algum tempo isso teve relativamente pouco efeito sobre o vasto acervo acumulado de arte pagã, e embora a tendência tenha sido de entregar templos e decorações à sua própria sorte, entrando eles em um estado de progressiva degradação, até o século VI houve tentativas de se preservar várias edificações e obras importantes como um testemunho da antiga glória do Império Romano, e, mais do que isso, de fato os princípios formais da arte pagã foram adotados em larga medida, mudando-se apenas os temas, para a fundação da arte cristã. Mas dali em diante a política oficial mudou, e então toda a arte pagã sofreu um destino inglório, e a depredação de templos, esculturas, pinturas e relevos se tornou generalizada. Mármores foram transformados em material de novas construções, bronzes foram fundidos para confecção de armas, e obras em ouro e prata foram também fundidas para recuperação do material precioso, perdendo-se desta maneira a maior parte da iconografia antiga de Atena.




Igreja de Santa Maria sobre Minerva, Assis, um templo de Minerva transformado em igreja católica.




 

De qualquer modo, a herança pagã não podia ser erradicada de todo, pois estava na base da cultura européia, e muito de suas tradições, filosofia e arte, se não nos temas pelo menos em essência e forma, conseguiu sobreviver envergando o novo traje do Cristianismo e servindo a um novo contexto. Atena permaneceu, a despeito de ataques, como um dos deuses antigos de maior apelo simbólico para as eras posteriores. Neste sentido o imaginário formado em torno da Virgem Maria é um exemplo significativo, pois ela passou a ocupar um papel semelhante ao que Atena ocupava na mitologia: uma mulher poderosa dentro de um sistema patriarcal, incorporando vários atributos da deusa. Diversos dos antigos santuários de Atena ou Minerva foram transformados em igrejas marianas e a iconografia primitiva da Virgem ocasionalmente a mostra com um aspecto militar. No século IV ela chegou a ostentar a aegis de Atena em seu peito, incluindo a cabeça da Medusa, O próprio Partenon foi transformado, em data obscura, em santuário mariano dedicado a Nossa Senhora de Atenas. A tradição se repetia, pois o povo passou a chamar Maria simplesmente de Parthenos, a virgem, assim como fizera séculos antes com sua antiga deusa.
Também passou a ser uma protetora das cidades, e uma crônica do século VII afirma que habitantes de Constantinopla, então ameaçada por inimigos, a viram a aparecer sobre seus muros brandindo uma lança e exortando o povo à resistência. Provavelmente essa assimilação foi enfatizada quando se transferiram as estátuas de Fídias que estavam na Acrópole de Atenas para a capital bizantina.

A partir do relato de seu nascimento da cabeça de Zeus, símbolo da mente divina, Atena permaneceu viva na tradição gnóstica e em outras correntes de esoterismo cristão medieval - herdeiras da filosofia clássica e helenística e inspiradas em textos bíblicos como o Cântico dos Cânticos, o Livro da Sabedoria e o Eclesiastes - transformada em Mater Magna (Grande Mãe) ou, mais comumente, Sophia, a sabedoria divina, personificações do aspecto feminino e materno de Deus e tidas como o poder criativo por excelência, o verdadeiro demiurgo do universo e o objeto primordial do desejo humano.
Embora o conceito esotérico de Sophia tenha sido combatido pelo Cristianismo ortodoxo, especialmente por sua alusão à maternidade e feminilidade de Deus, não obstante reapareceu constantemente na literatura mística medieval não só cristã, mas alimentando também a simbologia da Cabala judaica.
Outro exemplo foi a transferência de atributos de Atena para os retratos de algumas das primeiras imperatrizes bizantinas, continuando um costume que havia sido iniciado durante a sincretização de Atena e Minerva em Roma. A imagem de Atena/Minerva foi aplicada ademais a pesos de balanças romanas e depois bizantinas, alguns deles de refinado acabamento artístico, usados por mercadores cristãos até o século VII e possivelmente o século VIII, fato justificado por uma expansão do seu atributo da sabedoria: sabedoria → julgamento justo → medição exata. Há com isso boas razões, como afirmou McClanan, para dizer que Atena sobreviveu como um influente símbolo cultural depois da supressão do Paganismo.




 
Atena em ilustração de Remígio de Auxerre em seu comentário de Capella. A legenda identifica Atena como Virgo armata descens, rerum sapientia, Pallas (Desce Palas, a virgem armada, a sabedoria das coisas). Século IX. Biblioteca Nacional da Áustria.








 
Camafeu com as figuras de Posídon e Atena, século XIII. Biblioteca Nacional da França.










Por volta dos séculos IX-X escritores cristãos passaram a dar ao legado da antiguidade pagã uma apreciação mais positiva, aplicando-lhe uma leitura alegórico-moralizante impregnada de Estoicismo e Neoplatonismo e inserida dentro da órbita cristã, ainda que se perpetuasse a prática da condenação do Paganismo como um erro fundamental. Escoto Erígena, nascido no século IX na Irlanda, que na época era a única região européia fora da Grécia onde ainda se estudava grego, traduziu várias fontes originais e descreveu Atena como virtuosa e aquela cuja sabedoria está em perpétua renovação, sem corromper-se jamais. Remígio de Auxerre, também da escola irlandesa, influenciado diretamente por Erígena e autor de numerosas glosas e comentários sobre os clássicos, focou atenção sobre as deusas grecorromanas, em particular sobre Atena, enaltecendo longamente a sua sabedoria que não conhece mácula ou termo, a sua virgindade, a sua completude, a sua integridade e sua descendência de Zeus, segundo os estóicos a Alma do Mundo. Para ele Atena representava a memória e o engenho, todos incendiados pelo fogo divino e eterno, a sabedoria mais pura e mais alta, apresentando a deusa como uma intermediária entre o céu, imagem do macrocosmo, e a terra, o microcosmo, expressando na terra aquela sabedoria sob a forma das artes. O caráter guerreiro de Atena era um sinal da força da sabedoria, sugerindo que o conhecimento é o melhor caminho para a paz. Ambos os escritores trabalharam sobre o livro De nuptiis, de Martianus Capella, um escritor pagão do século V que foi um dos primeiros organizadores do sistema das artes liberais, tão importante para a educação medieval, dando um lugar destacado a Atena como senhora da sabedoria, à qual serviam todas as artes. Com seus comentários Erígena e Remígio, em linhas gerais repetindo a abordagem de Capella, introduziram Atena como uma figura simbólica de relevo no pensamento cristão. Levando as idéias de Remígio adiante, o Segundo Mitógrafo do Vaticano, um escritor anônimo que pode ter sido o próprio Remígio ou alguém de seu círculo, apresentou Atena como um ideal de vida monástica, cujas ambiguidades sexuais transcendiam a problemática do gênero singular.

No século XI Guillaume de Conches expandiu e aprofundou o gênero mitográfico, sendo o primeiro a estudar de forma consistente e integrada os deuses e o problema da sexualidade humana dentro da vida de contemplação religiosa, tentando aproximá-los num contexto filosófico coerente que levava em séria conta a questão do corpo feminino. Ele analisou de maneira original o episódio do concurso de beleza de que Atena participou centrando-se no efeito da frustração do desejo sexual masculino, e entendendo o corpo sexualizado da mulher como um signo cultural, isso numa época em que o monasticismo estava em alta, com seus ideais de negação do corpo, abstinência e racionalização do desejo, considerados necessários para os objetivos espirituais. Para ele Atena era a imagem da vida contemplativa, a mais elevada, e Páris, o juiz do concurso e símbolo da vontade humana, como a maioria dos homens, entregando o prêmio a Afrodite, a vida de volúpia, faz uma escolha que no fundo lhe é prejudicial.

Na mesma época os estudos clássicos já estavam bastante avançados em várias partes da Europa, como no Império Bizantino - onde surgiu uma espécie de culto literário dos antigos mitos, sendo aceita consensualmente, e já sem ressalvas piedosas contra o Paganismo, a leitura das narrativas pagãs como símbolos imbuídos de verdades profundas, válidos dentro da cultura cristã, e capazes de explicar vários aspectos do mundo - mas especialmente no norte da França, através da atuação das primeiras universidades, onde se lançou as bases da filosofia humanista, de larga influência subsequente no pensamento renascentista e na arte do período.
Com essa popularização da tradição pagã, escassamente distinguíveis, Atena ou Minerva começaram a reaparecer no final da Idade Média em representações literárias e visuais em vista do seu potencial simbólico.
Pierre Bersuire, engajado na cristalização do ideal cavaleiresco, em seu Ovídio Moralizado mostrou Atena como aquela que concede ao rei, o perfeito cavaleiro, as graças e virtudes necessárias para o estabelecimento de uma nova Idade Dourada, armando-o com o escudo cristalino da prudência, o espírito cristão e a iluminação espiritual. Bersuire foi de influência sobre Chaucer, que a apresentou em seus Contos de Canterbury como harmonia, unidade, fortaleza, a sabedoria que traz a paz de Deus e como a paz que emerge do conflito; Robert Holcot reiterou sua ligação com as artes liberais, louvou o caráter incorruptível de sua sabedoria e disse que ela era vestida por três túnicas: a gramática, a retórica e a dialética. Boccaccio escreveu que Minerva possuía um elmo para significar que os conselhos de um homem sábio permanecem ocultos e bem defesos; usava uma couraça já que o homem sábio está sempre precavido contra os golpes da Fortuna, e era armada com uma longa lança para significar que as ações do homem sábio têm um longo alcance, e suas invenções eram um benefício para a civilização. Como um homem de seu tempo, Boccaccio resistia em acreditar que tantas qualidades pudessem ser encontradas em uma mulher real, e considerava até potencialmente perigosa uma mulher que exibisse dotes intelectuais publicamente, ainda que louvasse as que o faziam no círculo privado de seus lares, mas não hesitava em aplaudir sua exibição pelo homem, como fica explícito em sua repetida alusão ao homem sábio.

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